Neurociências > Neurociências e o fonoaudiológo especialista em gagueira | |
Anelise Junqueira Bohnen
1) Como as neurociências têm colaborado para o entendimento da gagueira? 2) Como o fonoaudiólogo especialista em distúrbios de fluência transforma conhecimentos teóricos, em geral não produzidos por ele, em procedimentos terapêuticos? 3) Que competências e habilidades poderia desenvolver para dar conta da tarefa difícil, porém não menos estimuladora, de melhorar a qualidade de comunicação de uma pessoa que gagueja? 4) Como diminuir no ideário dos profissionais das áreas da saúde e educação o tamanho do conjunto de opiniões e mitos chamados de senso comum? A idéia de que os processos cerebrais necessários para a fala exercem papéis importantes na gagueira, tem recebido atenção ao longo dos anos e o potencial para compreender o relacionamento entre cérebro e os comportamentos de linguagem vem aumentando. As neurociências têm contribuído de forma significativa para o entendimento da gagueira, demonstrando que os indivíduos que gaguejam apresentam disfunções neurofisiológicas que provocam rupturas no fluir da produção da linguagem e da fala. Rupturas estas que, via de regra, não são encontradas nas pessoas fluentes. Embora exista entendimento sobre a gagueira do ponto de vista neurofisiológico, entre os próprios fonoaudiólogos ainda há divergências significativas sobre aspectos etiológicos e referenciais teóricos, e as óbvias conseqüências nos processos de avaliação e terapia. O conhecimento produzido promove novas aprendizagens e demanda uma constante ação de questionar e repensar o fazer fonoaudiológico. Discutir sobre a primeira pergunta implica em entender que os neurocientistas não são exclusivamente neurologistas. São profissionais originários de ciências como a física, radiologia, matemática, informática, neurologia, psiquiatria, psicologia, química, engenharia, biologia molecular, genética. Interagem com a filosofia, a bioética e a tecnologia. E, para entender gagueira, também formam parcerias com a fonoaudiologia. Os neurocientistas não se restringem a pesquisar sobre o onde estão e o como funcionam as estruturas responsáveis pela fala e pela linguagem no cérebro. Também consideram os efeitos destes funcionamentos no ato sensório-motor da fala. Estes estudos multidisciplinares têm provocado mudanças significativas nas concepções e formas de olhar a gagueira nas últimas duas décadas. A Fonoaudiologia ainda é uma profissão predominantemente feminina que atende a uma população predominantemente masculina, no caso da gagueira. Entender as diferenças cerebrais entre homens e mulheres e entre pessoas fluentes e que gaguejam é fundamental. Essas diferenças podem determinar o sucesso ou o insucesso de um processo terapêutico. Já a discussão sobre a segunda pergunta envolve ao menos dois diferentes aspectos que derivam do conhecimento já adquirido sobre a gagueira: a pesquisa e a criatividade. Investigou-se o conhecimento de médicos e psicólogos sobre a gagueira. Constatou-se que 163 médicos, residentes e doutorandos e 102 psicólogos e estagiários em psicologia clínica, obtiveram 31% de acertos em 3995 respostas obtidas sobre a contribuição das neurociências nesta área. Com um percentual de 69%, o senso comum de que gagueira tem origem psicológica se reflete nas condutas destes profissionais em relação ao encaminhamento e tratamento dos que gaguejam. O desafio é definir quais ações poderiam ser tomadas após esta constatação. A criatividade do especialista em gagueira também colabora para buscar meios para transformar teoria em prática. Sabe-se que pequenas dissincronias ocorrem durante a fala de indivíduos que gaguejam, favorecendo uma incoordenação muscular e/ou aerodinâmica entre os sistemas envolvidos na fonação, articulação e respiração. A produção da fala se vale de um sistema de planejamento dos atos motores que envolve o controle bilateral da musculatura do trato vocal nos dois hemisférios. Há uma inter-relação no sistema de controle motor incluindo a área motora suplementar, os gânglios da base, o tálamo e o cerebelo. Este sistema é capaz de precisar o tempo dos movimentos articulatórios, o controle do fluxo aéreo e a transformação do pensamento em informação acústica em milésimos de segundos. Para verificar se as alterações descritas na literatura são observáveis no aparelho fonador de portadores de gagueira durante seus momentos de não-fluência, foram realizadas fibronasovideolaringoscopias em seis sujeitos masculinos adultos, portadores de gagueira, não tratados. Os movimentos laríngeos foram observadas durante 90 segundos de fala espontânea e da leitura de um texto de 100 palavras. Cinco juízes analisaram as imagens. Com 100% de concordância entre eles, foram encontradas dezoito características laríngeas diferentes das esperadas em falantes fluentes: 66% dos sujeitos apresentaram musculatura para-faríngea com contração, contratura das musculaturas adjacentes e contração de aritenóides na pré-fonação e espasmos/contraturas visíveis na laringe; 50% apresentaram cricoaritenóideo com tremores, maiores dificuldades durante a leitura e elevação da base da língua; 33% tinham contração involuntária na base de língua, epiglote elevada na fala espontânea, tremores nas paredes da laringe, epiglote com formato reto e assimetria de aritenóides e 10% dos sujeitos apresentaram hipertrofia da amígdala lingual, criptas na língua, fechamento inadequado do espaço laríngeo, epiglote pequena, dificuldade de coaptação das PPVV no início da fonação e movimento das aritenóides com rotação. Um exame de baixo custo torna-se relevante no diagnóstico dos movimentos destas estruturas durante a fala gaguejada, e permite buscar estratégias terapêuticas que melhorem a sincronia dos movimentos da fala, aumentando os níveis de fluência. Para juntar as informações disponíveis e chegar à resposta da pergunta três, o especialista em gagueira precisa também dedicar-se a aprimorar habilidades e competências. O conhecimento só é conhecimento quando permite relacionar as informações inseridas num contexto. Esta é a competência Saber. O Saber Fazer reflete as habilidades e é no Saber Agir que aparecem os atributos pessoais e profissionais. É a capacidade de agir com rapidez e eficiência em situações previstas e não previstas. É na articulação e mobilização dos seus conhecimentos tácitos, científicos e experiências de vida e laborais que o especialista em gagueira se diferenciará no seu trabalho e, por conseguinte, no mercado. A resposta da quarta pergunta é prevenção. Não se pode evitar que a gagueira aconteça. Mas pode-se evitar que ela se instale, aumente e se cronifique. Para tal, os especialistas em gagueira têm participação obrigatória na solução. A prevenção se dará através de ações conjuntas com profissionais da saúde e da educação, pais, professores, familiares, portadores, diferentes mídias, com o claro objetivo de socializar conhecimentos científicos. A implementação de medidas simples, porém contínuas e sistemáticas permitirão que o senso comum - que ainda dificulta tanto a melhora da pessoa que gagueja - perca sua força. Há a urgente necessidade de migrar-se de uma abordagem individualista para um modelo de atuação em saúde onde a colaboração efetiva promova ações preventivas eficazes. O Fonoaudiólogo especialista em gagueira tem à sua frente desafios de grande porte para melhorar a qualidade de vida dos que gaguejam. O conhecimento adquirido e transformado em práticas terapêuticas eficientes é a sua porta de entrada para o sucesso. Buscar na ciência as respostas que auxiliem a esclarecer o senso comum e desvendar a gagueira. Preventivamente e com habilidades e competências definidas, o especialista em gagueira colaborará para que uma criança que hoje gagueja tenha um futuro de falas fluentes. ReferênciasALM, P. A New Framework for Understanding Stuttering: The Dual Premotor Model. 5TH WORLD CONGRESS ON FLUENCY DISORDERS, July, 2006 Dublin, Ireland. BOHNEN, AJ. Sobre paradigmas, linguagem e gagueira. Fono Atual 2000; 14:8-13. BOHNEN, AJ., OLIVEIRA A. A Contribuição das Neurociências para o Entendimento da Gagueira. Fono Atual 2004; 28:58-67. BOHNEN, AJ., Pacheco FC. Estudo Sobre Paradigmas de Distúrbios de Fluência em uma População de Fonoaudiólogos. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia – Suplemento Especial. XII Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia, Foz do Iguaçu, 2004. BOHNEN, AJ. Sobre a Gagueira. Editora Unisinos, São Leopoldo RS, 2005a. BOHNEN, AJ. 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