Releases > Posicionamento do IBF sobre gagueira e deficiência

O Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa) solicitou parecer técnico ao Instituto Brasileiro de Fluência (IBF) sobre considerar gagueira como deficiência. Disponibilizamos a seguir, o parecer enviado.

 

São Paulo, 10 de dezembro de 2018.

Prezada Dra Telma Costa,

MD Presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia

Re.: Atendendo à solicitação do Ofício / CFFa nº 621/2018, encaminhado ao Instituto Brasileiro de Fluência-IBF, a partir da demanda relacionada à Audiência Pública realizada na Câmara dos Deputados em Brasília, no dia 13 de novembro de 2018.

 

Após consulta com a Diretoria do Instituto Brasileiro de Fluência-IBF, e na posição de presidente, compartilho o que segue:

1. Como organização não governamental direcionada para fonoaudiólogos e pessoas que gaguejam, o IBF entende que, no momento atual, não há dados científicos disponíveis para determinar se a gagueira persistente pode ou não acarretar em deficiência.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, através da CID 101 (e da vindoura edição da CID 112) e da Associação Psiquiátrica Americana que publica o DSM V (2013)3, gagueira é classificada como um distúrbio neurodesenvolvimental, que inicia na infância. Para que não cronifique, é necessário que a criança que inicia a gaguejar, receba atendimento realizado por fonoaudiólogo especialista o mais próximo das manifestações iniciais do distúrbio4,5.

Essa foi e continua sendo a principal razão pela qual o IBF lutou pela criação da Especialidade em Fluência no Brasil6. Não se pode impedir que uma gagueira ocorra, mas temos a obrigação profissional de impedir que se torne persistente ou crônica.   

2. No Brasil ainda não se formam fonoaudiólogos com qualificação para avaliar e tratar distúrbios de fluência já que mais da metade de seus cursos de graduação não possuem disciplina específica que contemple esses conteúdos e, dos que contemplam, o número de horas no currículo geralmente é abaixo de cinco, de acordo com levantamento realizado pelo IBF para a criação da Especialidade em Fluência (este documento está no CFFa).

O que se vê é que a maioria das crianças não tratadas no momento certo, se tornam adultos que gaguejam. Se ações preventivas fossem realizadas e se os profissionais fonoaudiólogos tivessem uma formação sólida nesta área, a quantidade de pessoas adultas que gaguejam diminuiria ao longo do tempo. No limite, poderíamos chegar ao ponto de não necessitar debater e/ou implementar políticas públicas sobre deficiência para pessoas com gagueira.

3. Os adultos que gaguejam não podem usufruir de benefícios de cotas para fins de concursos e cargos públicos, porque não se enquadram na Lei Brasileira de Inclusão (LBI, Lei13.146/2015)7, nem no Decreto nº 3.298 (1999)8. Este decreto institui quatro tipos de deficiências: física, auditiva, visual e mental. Sugeriu-se na audiência pública, da mesma forma sugere-se aqui, que seja incluído neste decreto uma classificação específica para a comunicação (a “deficiência de comunicação”), na qual estaria inserida a gagueira e onde também poderiam ser incluídos outros distúrbios de comunicação que possam acarretar deficiência (como as afasias, por exemplo).

Por outro lado, quando pessoas com gagueira são aprovadas em concursos públicos, podem ser consideradas inaptas em avaliações médicas e psicológicas porque gaguejam (conforme demonstram alguns processos judiciais). Isso ocorre porque os avaliadores não só desconhecem este distúrbio de fluência, que atinge ao redor de 5% de crianças e 1% de adultos da população brasileira4,5,, como ainda mantém o senso comum de que gagueira tem origem psicológica. Desta forma, as pessoas que gaguejam permanecem numa espécie de limbo: não podem concorrer a vagas como deficientes, mas também não são consideradas “normais” no momento da avaliação médica/psicológica.

4. De acordo com o representante do Ministério da Saúde9, durante a audiência pública sobre gagueira da Comissão de Legislação Participativa, ocorrida em 13 de novembro passado,  da qual também participou a fga. Silvia Tavares representando o CFFa, o Ministério da Saúde, o Ministério dos Direitos Humanos e a Universidade de Brasília estão em fase de regulamentação e validação do Índice de Funcionalidade Brasileiro (IF-BR).

O Índice de Funcionalidade Brasileiro10 foi desenhado a partir do modelo conceitual da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Saúde (CIF, 2001)11 como base teórica e a partir do qual estão contemplados os seguintes tipos de deficiências: “Auditiva”, “Intelectual/Cognitiva”, “Motora”, “Visual” e “Mental” (este último para transtornos psiquiátricos). O IF-BR não contempla distúrbios da comunicação, como a gagueira e outros distúrbios de fluência.

Este seria um adendo significativo para o Índice. O trabalho de inclusão dos distúrbios de fluência no IF-BR poderá ser realizado por instituições como o Instituto Brasileiro de Fluência-IBF e o Comitê de Fluência da SBFa, que dispõem de fonoaudiólogos mestres e doutores que trabalham nesta área, além do próprio CFFa.

5. De acordo com os estudos em fase de validação12, o IF-Br deverá ser um instrumento único aplicável a todos os tipos de deficiência: auditiva, intelectual, mental, motora e visual, já que o seu enfoque estaria na funcionalidade do indivíduo independentemente do tipo de deficiência ou diagnóstico.

O documento diz  todos os tipos de deficiência. Pode-se pressupor que os organizadores do Índice não consideraram gagueira como deficiência. Importante ressaltar, no entanto, que a CIF da Organização Mundial da Saúde (2001)11, que é a base para o IF-BR, considera no seu código b330, as funções da fluência e do ritmo da fala (onde a palavra gagueira está expressa), como funções a serem avaliadas e consideradas. Ou seja, não é compreensível que no Índice Brasileiro estas funções tenham sido ignoradas.

A sugestão do IBF é que gagueira seja incluída na legislação brasileira, a exemplo do que já está no documento da Organização Mundial da Saúde.

6. É questionável levar em conta somente a severidade de um distúrbio de comunicação, como a gagueira, como critério para considerar ou não deficiência. Por exemplo, uma pessoa com gagueira leve, mas que também apresenta outro distúrbio fonoaudiológico (como dislexia) ou que apresenta um transtorno psiquiátrico (como fobia social ou depressão) pode funcionar como deficiente. Por outro lado, uma pessoa com gagueira grave, mas que não apresenta outros acometimentos de saúde, e que apresenta boa escolaridade e nível sócio-econômico, pode apresentar funcionalidade satisfatória. Ou seja, a avaliação deve ser feita de forma integrada.

À luz da LIB hoje, há um avanço no entendimento de que a deficiência seja apenas um problema biológico. É também necessário considerar o impacto que uma dificuldade tem na vida da pessoa. Segundo foi dito na audiência pública, o “biológico por si só não gera deficiência [...] Deve levar-se em conta os aspectos da participação da funcionalidade no dia-a-dia”9. Por isso, o IF-BR – quando validado e tiver gagueira incluído -  poderá ser um critério nacional a ser utilizado. Até o momento não há um critério nacional para a consideração de gagueira como sendo deficiência ou não.

Os resultados da aplicação do IF-BR poderão determinar se a funcionalidade da pessoa que gagueja a classificará como tendo deficiência, ou não.

7. Ao estudarmos este Índice, concordou-se que ele poderia se aplicar muito bem às pessoas com gagueira. Isso porque são avaliados sete domínios: Sensorial; Comunicação; Mobilidade; Cuidados Pessoais; Vida Doméstica; Educação, Trabalho e Vida Econômica; Socialização e Vida Comunitária. Cada domínio inclui atividades pertinentes. Por exemplo, o domínio Comunicação questiona sobre a capacidade do indivíduo para “receber mensagens”, “produzir mensagens”, “conversar” e “utilizar dispositivos de comunicação à distância”. O domínio Comunicação é o mais facilmente relacionado à gagueira. Entretanto, as atividades inclusas em outros domínios também podem necessitar de comunicação falada. Por exemplo, o domínio Mobilidade questiona sobre a capacidade do indivíduo para “utilizar transporte coletivo”; algumas pessoas com gagueira apresentam dificuldades nesta atividade específica, uma vez que podem ter dificuldades para solicitar informações. Outro exemplo pode ser visto no domínio Socialização e Vida Comunitária, que questiona sobre a capacidade do indivíduo para “se relacionar com estranhos”; também sabemos que algumas pessoas com gagueira restringem intensamente suas interações com pessoas fora do âmbito familiar. Ou seja, o IF-BR nos pareceu um instrumento adequado para avaliar a funcionalidade de pessoas com gagueira.

8. A partir deste estudo e da participação na audiência pública, o IBF sugeriu a duas universidades que produzissem uma investigação acadêmica com as regras do IF-BR para que se tenha pesquisas científicas para responder se gagueira sempre  acarreta deficiência, se nunca  acarreta deficiência ou se apenas em alguns casos  acarretam deficiência. Como o tema se mostrou bastante polêmico durante a audiência pública de novembro, e que gerou a solicitação do Oficio supracitado, o IBF entende que somente com pesquisas científicas poderá responder de forma satisfatória a esta questão, até para que seus resultados possam orientar o Poder Público sobre os rumos a tomar. Estas duas universidades estarão elaborando projetos de pesquisa para aprovação em Comitês de Ética em 2019.

Os resultados da aplicação do IF-BR poderão determinar se a funcionalidade da pessoa que gagueja a classificará como tendo ou não tendo deficiência. Ou como sendo ou não sendo deficiente. Dentro das próprias comunidades de pessoas que gaguejam, como a Associação Brasileira de Gagueira-Abragagueira por exemplo, não há unanimidade sobre quererem ser considerados deficientes por conta da gagueira. Por isso, critérios objetivos são de fundamental importância.

9. Outro caminho a ser considerado seria a criação de uma lei para gagueira nos moldes da “Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista” (Lei 12.764 de 27 de dezembro de 2012).

Portanto, a melhor resposta para a solicitação do Ofício 621/2018 é que sim, há uma necessidade importante e inadiável de o CFFa e a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, através do seu Comitê de Fluência, e em parceria com o Instituto Brasileiro de Fluência-IBF como ocorreu na regulamentação da Especialidade em Fluência, levarem este tema para a academia e para os órgãos públicos. Sempre lembrando que é necessário ter a certeza de que os acadêmicos dos cursos de graduação em Fonoaudiologia estarão devidamente qualificados para a aplicação destes critérios a partir do momento em que o Índice de Funcionalidade Brasileiro entrar em vigor.

 

Observação: O Instituto Brasileiro de Fluência-IBF recebeu o ofício do CFFa. Igualmente, a Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia encaminhou esta solicitação ao Comitê de Fluência (OF. 619/2018).

Como no momento presente as duas instituições estão sob a responsabilidade da mesma pessoa, as ideias expressadas nos dois ofícios serão muito semelhantes.

   

Referências:

1. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE [WHO]. ICD-10. Version: 2015. Disponível em: http://apps.who.int/classifications/icd10/browse/2015/en#/F98.5

2. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE [WHO]. ICD-11. Disponível em: https://icd.who.int/browse11/l-m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f654956298

3. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing. Disponível em: http://dsm.psychiatryonline.org/doi/book/10.1176/appi.books.9780890425596

4. BOHNEN, AJ. RIBEIRO, IM. Atualidades sobre gagueira. Cap 5, 67-86. IN: Cesar, AMA; Maksud, SS. Fundamentos e práticas em Fonoaudiologia. Editora Revinter, São Paulo. 2016.

5. BOHNEN, AJ; RIBEIRO, IM; FERREIRA, AM. Processos de intervenção nos distúrbios de fluência. Cap 23, 242-252. IN: Lamonica, DAC; Oliveira e Britto, DB;  org. Tratado de Linguagem: perspectivas contemporâneas. Editora Booktoy, São Paulo, 2017.

6. CONSELHO FEDERAL DE FONOAUDIOLOGIA: Resolução CFFa nº 507 de 19 de agosto de 2017. IN: http://www.fonoaudiologia.org.br/resolucoes/resolucoes_html/CFFa_N_507_17.htm

7. BRASIL (2015). Lei Brasileira de Inclusão. IN: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm

8. BRASIL (1999). Decreto nº 3.298 IN: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm

9. Silva, D.C.L  - Coordenador-Geral Substituto de Saúde da Pessoa com Deficiência do Ministério da Saúde. IN: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/webcamara/videoArquivo?codSessao=75813#videoTitulo

10. INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE. Manual do Índice de Funcionalidade Brasileiro (IF-Br). 2012. IN: http://www.actafisiatrica.org.br/imagebank/pdf/Manual_do_IF-Br.pdf

11. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE [WHO]. (2004). CIF Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. IN:  http://biblioteca.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2014/11/CLASSIFICACAO-INTERNACIONAL-DE-FUNCIONALIDADE-CIF-OMS.pdf  

12. Franzoi AC, Xerez DR, Blanco M, Amaral T, Costa AJ, Khan P, et al. Etapas da elaboração do instrumento de classificação do grau de funcionalidade de pessoas com deficiência para cidadãos brasileiros: índice de funcionalidade brasileiro - IF-Br Acta Fisiatr. 2013;20(3):164-178.

 

Atenciosamente,  

Dra Fga Anelise Junqueira Bohnen

CRFa 7-5587 Especialista em Fluência nº 6874/17

Presidente do Instituto Brasileiro de Fluência – IBF

Coordenadora do Comitê de Fluência da SBFa

presidencia@gagueira.org.br 

   
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