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Leila Nagib
A gagueira é um transtorno da fluência verbal que pode apresentar como característica a repetição de sílabas, o bloqueio na palavra, a imobilização pré-fonatória, e até mesmo um comportamento associado ao seu discurso verbal, atitude vista pelo interlocutor ou somente percebida pelo próprio gago. De características conhecidas, não possui, em sua origem, a mesma clareza de informação, podendo ser encontradas divergentes opiniões a respeito de sua gênese. Talvez esta multiplicidade de pensamentos que busque esclarecer sua origem, ocorra pela complexidade do que não é comum entre os que a apresentam, ou seja, o que torna a gagueira plural em um sujeito singular. A corrente articulatória refere a causa ao aspecto muscular propriamente dito. A emocional pode ser constituída do entendimento realizado pela criança, ainda em fase fisiológica, da dinâmica relativa ao ambiente familiar diante de sua expressão verbal e que influi na perpetuação da sintomatologia. A lingüística encontra-se intimamente associada ao ritmo que se organiza entre intenção e ato de fala e todas as estruturas que se desarmonizam, explicadas na aquisição e desenvolvimento da linguagem, concernente à formulação psicolingüística. Sendo assim, mais de um fator pode estar interligado e considerado na ascendência e terapêutica da gagueira. Há quem acredite em processos isolados e direcione seu trabalho a um único aspecto, apresentando sucesso em seu produto final. Entretanto, encontramos na visão não fragmentada o eixo de domínio da fala fluente. Portanto, este estudo reconhece na psicomotricidade a representante dos princípios causais, de contundência; a que argumenta e infere, sem conflitos, as manifestações e seus elementos geradores. Vale ressaltar que, a psicomotricidade apresenta coexistência com todos os outros aspectos e os intercede. Sam Keen e Anne Valley FOX OS OLHOS DO CORPOAssim como o corpo é uma festa (e principalmente por este fato), também encontra-se nele a explicação do universo aqui relatado, o diálogo deste corpo no mundo, com o outro, que busca manter entendimento. Não me refiro ao organismo, topologia, mas à expressão, à simbologia, ao imaginário. O sujeito expressa no corpo, através de posturas, tônus muscular, movimento, por intermédio de uma linguagem peculiar, o que o próprio corpo, instrumento, não diz por conta própria; corpo representativo às inscrições subjetivas. O visível representativo do invisível. Pela dialética entre corpo/mundo e sucessivas leituras realizadas por este representante que é o corpo, este estudo sugere o primeiro objetivo do trabalho prático com a gagueira, talvez o estágio mais abstrato, junto com a consciência: o olhar. De todos os entendimentos culturais possíveis que se traduz quando o olhar entra em questão, é o olho (extra globos oculares e seus anexos), o terreno que fertiliza a perspicácia, a atenção, a vigilância, o conhecimento e a consciência. O simples fato da dificuldade do gago em, inicialmente, ver sua gagueira e tudo correlato a ela; de voltar-se para suas condutas típicas quase secretas ou simplesmente atentar aos convites de outros olhos, baseia esta abordagem. O sujeito portador de gagueira, de um modo geral, tem um olho que flutua na própria impercepção, que diz não à atenção e às informações de seu comportamento de fala enquanto o outro olho diz sim à consciência, deseja familiarizar-se consigo, com sua maneira de falar e busca abluir para se auto conhecer. Thérèse BERTHERAT UM OLHO NA GAGUEIRA E OS DOIS NA FLUÊNCIANa verdade, o desejo de todos, em relação à sua comunicação, é apresentar uma fala fluida, que traduz-se por si só, através da cadência ritmada, do pensamento organizado, do conteúdo que impulsiona o diálogo e da satisfação causada pela sensação de ser ouvido. Para exprimir-se verbalmente há que existir prazer. Prazer na tríade: dizer, ser ouvido e ouvinte; onde cada intenção tem o seu tempo. Permuta ordenada e espontânea; ação trivial aos que nada receiam ou reconhecem de extraordinário em sua fala, porém ato, tanto temido quanto ávido dos que não têm, em sua imagem, a representação de ser alguém que fale bem. Sendo assim, esta abordagem sugere o segundo objetivo prático da terapêutica da gagueira, diretamente relacionada ao olhar: A consciência da gagueira e da própria fluência. Ter consciência é saber, perceber, provar, experimentar, conhecer, sentir, internalizar e integrar-se ao estímulo. A sua evolução estrutura-se através das funções sensoriais e motoras. É pela ação prática-e-concreta que se forma e (in)forma a consciência. Todo processo de conscientização deve respeitar o ritmo interno individual, favorecendo assim uma evolução progressiva, que tem em sua gênese instantes e flashes, até alcançar a percepção plena, somente assim haverá mudanças. Afinal, foram anos de uma mesma experiência, com seus ritos, ações e reações. O grande desafio da práxis com gagos é o aspecto da progressividade. Não relaciono progressividade à prognóstico, longevidade de resposta terapêutica ou duração, mas aos fatores consciência/ritmo. A partir do instante em que o indivíduo estabelece convívio consigo mesmo, ou seja, aplica o verdadeiro sentido da vista que é olhar, sua consciência intensifica-se, passa a conhecer-se e reconhecer em sua fala também a fluência. A imagem edificada do sujeito que domina o bem dizer, necessita ser construída. A prática comunicativa é o caminho desta estruturação e para tal é preciso estar diante do outro. Provavelmente, foi a leitura de situações no mundo que contribuiu para a gagueira no gago e por isto mesmo, sem o outro, não há feedback. Clarice LISPECTOR. SOBREVIVER, NÃO. SUPERVIVER.As atitudes frente ao mundo, são freqüentemente tomadas pela revisitação dos estímulos oferecidos para a ampliação do processo do conhecimento. Na verdade, estas oportunidades contribuem às mudanças, que se revelam e são assimiladas, na valorização de si mesmo, ligadas ao sentido do amor próprio, conseqüente influência desses espelhos que nos referenciam e permitem a ascendência da imagem de um falante corrente. A reimpressão deste processo, que se traduz pela vivência permissível de um possível ser fluente, ocorre da consciência de sua fala e da criação de novos padrões, portanto, esta percepção do seu verdadeiro valor, pode ser incluída como objetivo desta temática: A ampliação da auto-estima. Isadora DUNCAN
Este espectro que povoa toda a história do indivíduo gago, muitas vezes, torna-se referência e potencializa-se por outras dificuldades, representa um paradigma nesta existência, nutrido e perpetuado pela não oportunidade em saber-se fluente. Vale ressaltar que para o gago (e para o outro), a gagueira não é ilusão ou um espectro. Ela existe de fato e é composta de grande densidade. A gagueira perturba, mas é real. A gagueira faz o gago sentir-se diferente, mas é real. Chico BUARQUE/Edu LOBO AS NOÇÕES PSICOMOTORAS E AS PROTOVIVÊNCIAS.No organismo, a estrutura dos ritmos vitais, alimentação e sono, dispõe-se por causas físicas, revezamento do dia e da noite ou por regras sócio culturais. O recém-nascido, quando exposto a uma experiência relacional, dependendo do seu ambiente familiar, pode ter um desenvolvimento com afeto, diante de um meio que respeite suas solicitações, e atingir, assim, um bom equilíbrio tônico-emocional, ou vivenciar transtornos tônico-emocionais, se fizer parte de um meio rígido, que valorize pouco os seus ritmos próprios. A relação mãe-filho estabelece-se, pelo aspecto da regularização rítmica biológica da criança (dentre outras). Ocorre um fenômeno ressonante pelo diálogo tônico síncrono pelas correspondências corporais. O bebê tem noção do antes e depois pelo instante da alimentação. A tensão que representa o momento da fome e desprazer, dá lugar à satisfação, saciada e prazerosa de ter sido nutrido, atingindo um verdadeiro estado de hipotonia (x tensão) atribuída pelo sono. Sendo assim o referencial do próximo objetivo desta abordagem: o ritmo/o tempo, é decretado pelas noções de manhã e noite, com referenciais de almoço e jantar até que a criança possa nomear os meses do ano em seqüência. Paulinho MOSKA.
A vivência rítmica, que se experencia com o movimento, adapta-se às operações do espaço e mantêm-se pela prática percepto-temporal que terá importância no ambiente e nas informações sonoras, incorporando-as, através dos seus ritmos motores. Sendo assim, a articulação entre o ritmo e o espaço é praticada pela coordenação dos movimentos. Le BOULCH
Quando pensamos em descrever o ritmo, como um dos fatores causais desta abordagem, o tempo se exibe e se aproxima, mostrando sua familiaridade e atributos, enquanto o espaço, como elemento conservatório congrega-se à velocidade, para dar sentido ao movimento. Falar é movimento, e mais sutil, dos mais complexos. Uma linha tênue separa estes conceitos (e todos os outros relacionados às noções psicomotoras). Talvez possamos dividi-los, didaticamente. Atribuo, somente à didática, a capacidade de destiná-los separadamente. (SCHILDER,1994,p.101)
A organização do tempo, (associação espaço-tempo, as relações no tempo, adaptação às informações temporais), bem como a organização do espaço, (o sujeito diante do espaço, no espaço, o outro no espaço, e o espaço representado), são noções ontogenéticas. Tais elementos encontram-se diretamente associados, interdependentes do equilíbrio, da coordenação geral e específica, do esquema e da imagem corporais. Paulo MIKLOS\Arnaldo ANTUNES O EU, O OUTRO. O EU DO OUTRO. OS TANTOS EUS.(LEVIN,1995,P.71)
A partir da sensação, origem da essência absoluta e realidade que envolve o ser, se estabelece ligação para a percepção, existente por uma dependência de noções previamente sentidas, mas agora conscientes. (SCHILDER, 1994,P.101)
Estimular sensação e percepção é fundamental na terapêutica da fluência, pois os sentimentos possibilitam o vínculo, são únicos e não se repetem. Os sentimentos nos acometem como a impressão digital que nos documenta.
Esses são alguns questionamentos que se desenvolvem a partir dos conceitos abordados e que necessitam de aplicabilidade prática no trabalho com gagueira e com o sujeito gago, este aprendiz do bem dizer e sua possível fala fluente. (PLATÃO. O Olhar, 1993, p.49)
Agora, imaginemos um riacho que corre sem pressa e em sua inteireza, possui autorização para ser fluente. Até a sua natureza é composta de pedras e feixes de tamanhos variados, meandros e curvas, olho d’água, folhas secas e outras estruturas. Se imaginarmos a água que flui, não conseguiremos pensar em água que queda, mas assistiremos a uma ação intercorrente, que varia conforme os organismos que o corpo/água se depara. O rio, em constante transformação, corre em estado fluido, distorcendo a transparência da água, em sua trajetória. Assim, também é a fala e seus sistemas de emissão, ressonância e articulação, seus estados subjetivos, o ambiente, a natureza. A fluência, segundo Aurélio B. de Holanda é a deformação lenta de um corpo submetido a uma tensão constante. Deduz-se então, que, mesmo a água do riacho deforma-se para fluir. Na gagueira hesita-se, vacila-se. A respiração e o relaxamento são objetivos imprescindíveis a esta imagem. O falante necessita de amplitude e harmonia respiratória para falar bem. A emoção e os sentimentos alteram a respiração. Respirar é ritmo, pulsar, vitalizar, enquanto relaxar é tônus, alerta, não contração, equilibração muscular. Estar relaxado é condição necessária para o bem dizer. Movimentos tensos e acelerados dificultam o sentir, o fluir. Este é o caminho para o domínio da fala e outro desafio do trabalho com a gagueira e o sujeito gago: desacelerar, equilibrar, facilitar. A economia do movimento através do ritmo, evita o desgaste e o desconforto. O ser vital está atento, tem o tom de voz colorido e presente, demonstra melodia, cadência e clareza na articulação. Elementos da arte de dizer, princípios prosódicos que necessitam ser revisitados. Pois, como o futuro do rio é o de desaguar no mar, também a fala chega ao seu destinatário, o outro, aquele que nos olha e é o espelho que reflete a nós mesmos. Caetano VELOSO A PRÁTICA, A GAGUEIRA NÃO VIRÓTICA.A visão desta prática com gagueira emerge da necessidade de olhar e valorizar o indivíduo no lugar da patologia, de minimizar e rever antigas (re)ações diante do auto-conhecimento, do reforço da auto-estima e da expressão livre do pensamento, sem que o exercício constante de formular e selecionar o que se deseja dizer por medo de gaguejar, (antes mesmo de acontecer), dificulte o processo lingüístico. Através da vontade de mudança do ser, da transformação de papéis que determinam e, que o próprio sujeito entende com sua compreensão, do reconhecimento e reforço do que lhe é saudável, do olho que passa a olhar para o momento do não gaguejar, do sucesso e bem estar que são promovidos por sua fluência, da harmonia entre os aspectos afetivo e lingüístico, do domínio da articulação não só verbal, mas de sua própria vida cinestésica (tendo como força geratriz o auto-conhecimento e a auto-estima), atingiremos, assim, o expoente máximo do ser, que tem na linguagem falada o instrumento para sua livre expressão, a qual somente aperfeiçoa-se e coexiste através da realimentação. A proposta deste trabalho não baseia-se nos sintomas, mas sim na crença de que cada indivíduo é uno, indivisível, potencialmente retratador diante de sua expressão na vida. Somente a partir de si, da manifestação e da constatação de suas potencialidades poderá, este ser, reconhecer adiante esta divindade; para relacionar-se, entender-se e transformar(-se) com o outro. (LEVIN,1995,p.55)
Os limites e expansões correspondentes do corpo, podem ser facilitadas pelo toque. Movimentos tensos e acelerados dificultam o sentir, por isso a importância da vivência psicomotora: corpo vivido, discriminado e representado, que alicerça este trabalho. A base do desenvolvimento humano é o movimento. Não há uma possibilidade existencial que o movimento não participe, não esteja presente. A música pode ser utilizada como um dos elementos terapêuticos e coexistente à prática vivencial. É captada por todo o corpo. O ritmo tem efeito principal nos jogos com a música. Os demais fatores (ressonância, memória afetiva, combinação de sons) reforçam esta ordem principal. Música e movimento. Compassos regulares, inicialmente. Som x silêncio. Vibração x descanso. A música tem o poder de nos levar ao reencontro com a fonte motora (poder do ritmo), afetiva (melodia) e mental (organização temporal). A música é linguagem universal e não dispersa, como acreditam algumas filosofias terapêuticas. A música ativa os sistemas Simpático e Parassimpático. Ultrapassa barreiras. (SCHILDER,1994,p.154) Affonso Romano de SANT’ANNA
A psicomotricidade previne, amplia, perpassa. A criança e a família. O adulto e seus espelhos. Eu e o outro. Os estados subjetivos existentes no sujeito. O mundo. O meio. Somente quando me relaciono com o outro sou capaz de olhar e me ver, mesmo que através do reflexo dos olhos do outro. Quando resgato a espontaneidade e facilito a qualidade de ser feliz. Fluir em grupo é compor música animada (que tem alma), melodia eternamente inacabada, expressa pela emoção que se oxigena, e conduzida pelo maestro maior que é a integração e respeito às diferenças existentes em cada um de nós. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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