Tratamentos > O fluir psicomotor

Leila Nagib
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Instituto Brasileiro de Fluência - IBF


A gagueira quase palavra quase aborta
A palavra quase silêncio
Quase transborda
O silêncio quase eco
A gagueira agora
O século eco.

Arnaldo ANTUNES

 

A gagueira é um transtorno da fluência verbal que pode apresentar como característica a repetição de sílabas, o bloqueio na palavra, a imobilização pré-fonatória, e até mesmo um comportamento associado ao seu discurso verbal, atitude vista pelo interlocutor ou somente percebida pelo próprio gago.

De características conhecidas, não possui, em sua origem, a mesma clareza de informação, podendo ser encontradas divergentes opiniões a respeito de sua gênese. Talvez esta multiplicidade de pensamentos que busque esclarecer sua origem, ocorra pela complexidade do que não é comum entre os que a apresentam, ou seja, o que torna a gagueira plural em um sujeito singular.

A corrente articulatória refere a causa ao aspecto muscular propriamente dito. A emocional pode ser constituída do entendimento realizado pela criança, ainda em fase fisiológica, da dinâmica relativa ao ambiente familiar diante de sua expressão verbal e que influi na perpetuação da sintomatologia. A lingüística encontra-se intimamente associada ao ritmo que se organiza entre intenção e ato de fala e todas as estruturas que se desarmonizam, explicadas na aquisição e desenvolvimento da linguagem, concernente à formulação psicolingüística.

Sendo assim, mais de um fator pode estar interligado e considerado na ascendência e terapêutica da gagueira. Há quem acredite em processos isolados e direcione seu trabalho a um único aspecto, apresentando sucesso em seu produto final. Entretanto, encontramos na visão não fragmentada o eixo de domínio da fala fluente. Portanto, este estudo reconhece na psicomotricidade a representante dos princípios causais, de contundência; a que argumenta e infere, sem conflitos, as manifestações e seus elementos geradores. Vale ressaltar que, a psicomotricidade apresenta coexistência com todos os outros aspectos e os intercede.

[...].A postura de espectador tem origem na infância.
Na infância éramos vigiados. Os olhos oniscientes de nossos pais nos envolviam com sorrisos (talvez) e nos protegiam de fornos quentes, de cães ferozes e de pessoas estranhas. Mas os olhos vigilantes também nos espreitaram, vigiando-nos de perto ou trespassando-nos. Estávamos seguros, mas transparentes. Com o decorrer do tempo, queríamos usufruir de liberdade suficiente para ter nossas diferentes intimidades.

Sam Keen e Anne Valley FOX

OS OLHOS DO CORPO

Assim como o corpo é uma festa (e principalmente por este fato), também encontra-se nele a explicação do universo aqui relatado, o diálogo deste corpo no mundo, com o outro, que busca manter entendimento.

Não me refiro ao organismo, topologia, mas à expressão, à simbologia, ao imaginário.

O sujeito expressa no corpo, através de posturas, tônus muscular, movimento, por intermédio de uma linguagem peculiar, o que o próprio corpo, instrumento, não diz por conta própria; corpo representativo às inscrições subjetivas. O visível representativo do invisível.

Pela dialética entre corpo/mundo e sucessivas leituras realizadas por este representante que é o corpo, este estudo sugere o primeiro objetivo do trabalho prático com a gagueira, talvez o estágio mais abstrato, junto com a consciência: o olhar.

De todos os entendimentos culturais possíveis que se traduz quando o olhar entra em questão, é o olho (extra globos oculares e seus anexos), o terreno que fertiliza a perspicácia, a atenção, a vigilância, o conhecimento e a consciência. O simples fato da dificuldade do gago em, inicialmente, ver sua gagueira e tudo correlato a ela; de voltar-se para suas condutas típicas quase secretas ou simplesmente atentar aos convites de outros olhos, baseia esta abordagem.

O sujeito portador de gagueira, de um modo geral, tem um olho que flutua na própria impercepção, que diz não à atenção e às informações de seu comportamento de fala enquanto o outro olho diz sim à consciência, deseja familiarizar-se consigo, com sua maneira de falar e busca abluir para se auto conhecer.

80 por cento de nossas percepções sensoriais são percepções visuais.
De todas as nossas sensações, 80 por cento são visuais.
[...]É que a vista é o que nos resta, a 80 por cento, a vista, em suma, é o homem...
[...]Mais grave dos que os olhos que não vêem são os olhos que pensam que vêem e se enganam, olhos que entram em todos os ardis, em todas as ciladas que lhe são preparadas.
Não me refiro aos defeitos de visão oficialmente consagrados: miopia, astigmatismo[...]

Thérèse BERTHERAT

UM OLHO NA GAGUEIRA E OS DOIS NA FLUÊNCIA

Na verdade, o desejo de todos, em relação à sua comunicação, é apresentar uma fala fluida, que traduz-se por si só, através da cadência ritmada, do pensamento organizado, do conteúdo que impulsiona o diálogo e da satisfação causada pela sensação de ser ouvido.

Para exprimir-se verbalmente há que existir prazer. Prazer na tríade: dizer, ser ouvido e ouvinte; onde cada intenção tem o seu tempo. Permuta ordenada e espontânea; ação trivial aos que nada receiam ou reconhecem de extraordinário em sua fala, porém ato, tanto temido quanto ávido dos que não têm, em sua imagem, a representação de ser alguém que fale bem. Sendo assim, esta abordagem sugere o segundo objetivo prático da terapêutica da gagueira, diretamente relacionada ao olhar: A consciência da gagueira e da própria fluência.

Ter consciência é saber, perceber, provar, experimentar, conhecer, sentir, internalizar e integrar-se ao estímulo. A sua evolução estrutura-se através das funções sensoriais e motoras. É pela ação prática-e-concreta que se forma e (in)forma a consciência.

Todo processo de conscientização deve respeitar o ritmo interno individual, favorecendo assim uma evolução progressiva, que tem em sua gênese instantes e flashes, até alcançar a percepção plena, somente assim haverá mudanças. Afinal, foram anos de uma mesma experiência, com seus ritos, ações e reações. O grande desafio da práxis com gagos é o aspecto da progressividade. Não relaciono progressividade à prognóstico, longevidade de resposta terapêutica ou duração, mas aos fatores consciência/ritmo. A partir do instante em que o indivíduo estabelece convívio consigo mesmo, ou seja, aplica o verdadeiro sentido da vista que é olhar, sua consciência intensifica-se, passa a conhecer-se e reconhecer em sua fala também a fluência.

A imagem edificada do sujeito que domina o bem dizer, necessita ser construída. A prática comunicativa é o caminho desta estruturação e para tal é preciso estar diante do outro. Provavelmente, foi a leitura de situações no mundo que contribuiu para a gagueira no gago e por isto mesmo, sem o outro, não há feedback.

Eu só existo no diálogo.

Clarice LISPECTOR.

SOBREVIVER, NÃO. SUPERVIVER.

As atitudes frente ao mundo, são freqüentemente tomadas pela revisitação dos estímulos oferecidos para a ampliação do processo do conhecimento. Na verdade, estas oportunidades contribuem às mudanças, que se revelam e são assimiladas, na valorização de si mesmo, ligadas ao sentido do amor próprio, conseqüente influência desses espelhos que nos referenciam e permitem a ascendência da imagem de um falante corrente.

A reimpressão deste processo, que se traduz pela vivência permissível de um possível ser fluente, ocorre da consciência de sua fala e da criação de novos padrões, portanto, esta percepção do seu verdadeiro valor, pode ser incluída como objetivo desta temática: A ampliação da auto-estima.

O corpo precisa tornar-se transparente e servir de meio de expressão para a mente e o espírito.

Isadora DUNCAN


O domínio da palavra é interno, bem como o prazer de ser ouvido. O gago gosta de ser ouvido, mas acredita que a gagueira ocupe a sua porção externa. Atribui ao seu gaguejar um organismo que, muita vez, possui o seu tamanho (ou maior, depende do momento!), é composto de braços e mãos que agarram, de olhos que olham, de boca e cérebro que falam por conta própria, um coração pulsante e outros tantos órgãos semelhantes aos seus. O fantasma da gagueira parece ser maior do que ela própria. E permanece a idéia de ter autorização para existir, mesmo que de modo desconhecido, vacilante e às vezes, flutuante. Claro que esta imagem não é tão simples e linear, baseia-se no relato de diferentes e inúmeros sujeitos que descreveram suas dificuldades de fluidez verbal no ambulatório de transtornos da fluência da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Este espectro que povoa toda a história do indivíduo gago, muitas vezes, torna-se referência e potencializa-se por outras dificuldades, representa um paradigma nesta existência, nutrido e perpetuado pela não oportunidade em saber-se fluente.

Vale ressaltar que para o gago (e para o outro), a gagueira não é ilusão ou um espectro. Ela existe de fato e é composta de grande densidade. A gagueira perturba, mas é real. A gagueira faz o gago sentir-se diferente, mas é real.

Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem
Não livra ninguém
Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente
Medo de cair, gente
Medo de vertigem
Quem não tem
Confessando bem
Todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina
Todo mundo tem um primeiro namorado
Só a bailarina que não tem
Sujo atrás da orelha
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
O padre também
Pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina
Reparando bem, todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Procurando bem
Todo mundo tem...

Chico BUARQUE/Edu LOBO
A Ciranda da Bailarina

AS NOÇÕES PSICOMOTORAS E AS PROTOVIVÊNCIAS.

No organismo, a estrutura dos ritmos vitais, alimentação e sono, dispõe-se por causas físicas, revezamento do dia e da noite ou por regras sócio culturais.

O recém-nascido, quando exposto a uma experiência relacional, dependendo do seu ambiente familiar, pode ter um desenvolvimento com afeto, diante de um meio que respeite suas solicitações, e atingir, assim, um bom equilíbrio tônico-emocional, ou vivenciar transtornos tônico-emocionais, se fizer parte de um meio rígido, que valorize pouco os seus ritmos próprios.

A relação mãe-filho estabelece-se, pelo aspecto da regularização rítmica biológica da criança (dentre outras). Ocorre um fenômeno ressonante pelo diálogo tônico síncrono pelas correspondências corporais.

O bebê tem noção do antes e depois pelo instante da alimentação. A tensão que representa o momento da fome e desprazer, dá lugar à satisfação, saciada e prazerosa de ter sido nutrido, atingindo um verdadeiro estado de hipotonia (x tensão) atribuída pelo sono. Sendo assim o referencial do próximo objetivo desta abordagem: o ritmo/o tempo, é decretado pelas noções de manhã e noite, com referenciais de almoço e jantar até que a criança possa nomear os meses do ano em seqüência.

Quantas horas cabem num segundo?
Onde é que eu estou a cem mil anos atrás?
Pra que direção mora o futuro?
E que passado o amanhã nos traz?
Quantas vezes eu morri agora?
Quantas vidas irei suportar?
Não é por estar aqui do lado de fora
Que eu não adentre com o meu olhar.

Paulinho MOSKA.
O ano passado que vem


O cérebro possui a característica básica de ser um sistema auto-regulador, tem a aptidão de dominar suas operações, transformá-las por conta das situações enviadas pelo meio, além de gerar seus próprios dados. Em toda a esfera de extensão de uma vida, esta auto-programação e auto-regulação da ação ocorre, devido à estruturação do Sistema Nervoso Central nos níveis de organização funcional e temporal dos diferentes sistemas.

A vivência rítmica, que se experencia com o movimento, adapta-se às operações do espaço e mantêm-se pela prática percepto-temporal que terá importância no ambiente e nas informações sonoras, incorporando-as, através dos seus ritmos motores. Sendo assim, a articulação entre o ritmo e o espaço é praticada pela coordenação dos movimentos.

É através do ritmo dos movimentos registrados, no seu corpo, que a criança tem acesso a organização temporal.

Le BOULCH


Orientar-se no tempo é apreciar o movimento presente em relação ao passado ou a um suposto futuro. É diferenciar o passageiro, o transitório, o rápido, do demorado, vagaroso e lento.

Quando pensamos em descrever o ritmo, como um dos fatores causais desta abordagem, o tempo se exibe e se aproxima, mostrando sua familiaridade e atributos, enquanto o espaço, como elemento conservatório congrega-se à velocidade, para dar sentido ao movimento. Falar é movimento, e mais sutil, dos mais complexos. Uma linha tênue separa estes conceitos (e todos os outros relacionados às noções psicomotoras). Talvez possamos dividi-los, didaticamente. Atribuo, somente à didática, a capacidade de destiná-los separadamente.

Deve-se frisar, como fez Scholl, que o movimento leva a uma melhor orientação em relação a nosso corpo. Não sabemos muito a respeito do corpo, a não ser que o movamos. O movimento é um importante fator de unificação das diferentes partes de nosso corpo, e através dele chegamos a uma relação definitiva com o mundo externo e com os objetos, sendo que só através do contato com o exterior nos tornamos capazes de correlacionar as diversas impressões relativas a nosso corpo.

(SCHILDER,1994,p.101)


Na dicotomia temporal, nada dissocia-se, tudo harmoniza-se: o tempo socializado x vivido; dia x noite; as potencialidades exigidas pelo meio x as potencialidades próprias de cada indivíduo; dentro x fora; movimento do universo x movimento do universo que sou; tudo enfim, nesta atuação dual, desde o instante em que sou recebido pelo mundo (ou antes?) neste ambiente que me acolhe e no qual vivencio as primeiras noções intersubjetivas, as protovivências, pelas quais me integro e me encanto ou com as quais, morro de frio.

A organização do tempo, (associação espaço-tempo, as relações no tempo, adaptação às informações temporais), bem como a organização do espaço, (o sujeito diante do espaço, no espaço, o outro no espaço, e o espaço representado), são noções ontogenéticas. Tais elementos encontram-se diretamente associados, interdependentes do equilíbrio, da coordenação geral e específica, do esquema e da imagem corporais.

Será que a cabeça tem o mesmo tempo que a mão ?
O tempo do pensamento, o tempo da ação.
Será que o teto tem o mesmo tempo que o chão ?
O tempo de decompor
O tempo de decomposição.
Será que o filho tem o mesmo tempo que o pai ?
O tempo do nascimento, crescimento, envelhecimento...
Um momento, um momento.
O homem pensa que faz a guerra, a paz.
Enquanto o homem pensa, o tempo se faz .
O homem pensa q é alegre, triste .
Enquanto o tempo passa o homem assiste
como matar o tempo.

Paulo MIKLOS\Arnaldo ANTUNES
Tempo

O EU, O OUTRO. O EU DO OUTRO. OS TANTOS EUS.



A imagem corporal é constituinte do sujeito desejante e, como tal, é um mistério, não é em absoluto da ordem do evolutivo, vai se constituindo no devir histórico da experiência subjetiva. Por isso está relacionada com a inscrição, com a demarcação mnêmica.

(LEVIN,1995,P.71)


Da comunicação corporal que ocorre entre o bebê e a mãe, origina a imagem corporal. Através das sensações, a criança atua no mundo, com realidades externas e vivencia seus estados orgânicos, configurados pela propriocepção, o gesto motor e a percepção. Esta equilibração psico-afetiva é decorrente da construção do indivíduo como um sujeito de ação, que age e interage com o outro.

A partir da sensação, origem da essência absoluta e realidade que envolve o ser, se estabelece ligação para a percepção, existente por uma dependência de noções previamente sentidas, mas agora conscientes.

O modelo postural do corpo precisa ser construído, e é uma criação e uma construção, e não um dom.

(SCHILDER, 1994,P.101)


O esquema corporal é a representação intelectual do corpo, que está inscrita no cérebro, enquanto a imagem corporal é a tomada da ciência e depende do esquema para atualizar-se, edificando-se a partir do Outro.

Estimular sensação e percepção é fundamental na terapêutica da fluência, pois os sentimentos possibilitam o vínculo, são únicos e não se repetem. Os sentimentos nos acometem como a impressão digital que nos documenta.

  • Como me sinto diante do mundo com a minha fala (partindo do princípio que agora ela é familiar), movimento, expressão?
  • Qual o terreno que me apresentam, subjetivamente, para que possa falar bem?
  • O que busco/sinto com a palavra?
  • O que vejo em mim mesmo, quando falo ao outro?
  • Há consentimento/estímulo para que eu seja um ser fluente?

Esses são alguns questionamentos que se desenvolvem a partir dos conceitos abordados e que necessitam de aplicabilidade prática no trabalho com gagueira e com o sujeito gago, este aprendiz do bem dizer e sua possível fala fluente.

[...]Sócrates: Que coisa haveremos de olhar para que nos vejamos a nós mesmos?
Alcebíades: Certamente um espelho.
Sócrates: Dizes bem. Mas nos olhos com que vemos não há algo semelhante?
Alcebíades: Sem dúvida.
Sócrates: Não notaste que, quando olhamos o olho de alguém que está diante de nós, nosso rosto se torna visível nele, como num espelho, naquilo que é a melhor parte do olho a que chamamos de pupila, refletindo assim a imagem de quem olha?
Alcebíades: Exatamente.
Sócrates: Desse modo, o olho, ao considerar e olhar outro olho, na sua melhor parte, assim como a vê também vê a si mesmo.
Alcebíades: Assim parece.
Sócrates: [...] portanto, se o olho quiser ver-se a si mesmo, terá que dirigir o olhar para um outro e precisamente para aquela parte do olho onde se encontra a faculdade perceptiva. Essa faculdade chamamos visão[...] pois bem, se a alma desejar conhecer-se a si mesma deve olhar para uma outra alma em sua melhor parte e ali onde se encontra a faculdade própria da alma, a inteligência ou algo que lhe assemelha[...] haveria nela parte mais divina do que aquela onde se encontram intelecto e razão?
Alcebíades: Não.
Sócrates: Essa parte é realmente divina e quem a olha descobre o sobre humano, o divino e, assim conhece melhor a si mesmo[...] Assim como os espelhos reais são mais claros, mais puros e luminosos do que o espelho de nossos olhos, assim também a divindade é mais pura e luminosa do que a parte superior de nossa alma[...] olhando a divindade, nos servimos do melhor espelho e nele nos vendo conhecemo-nos melhor[...] e conhecer-se a si mesmo, não é o que chamamos de sabedoria?

(PLATÃO. O Olhar, 1993, p.49)


O equilíbrio possibilita o conhecimento. A ação sobre o meio através das atividades motoras posturais se repete e se expande, até harmonizar-se. A ação atinge o pensamento como uma flecha em seu alvo. Somente depois disto, o alvo comanda, disponibilizando-se ao destino da flecha. Imaginemos o ato de fala, aprendizado adquirido através de todas as noções abordadas neste estudo, desenvolvido da exploração do mundo, das oportunidades da vivência até a consciência, da ampliação da coordenação geral, do equilíbrio até atingir a coordenação mais específica: ação criativa e vital , seqüencial, ritmada e espontânea.

Agora, imaginemos um riacho que corre sem pressa e em sua inteireza, possui autorização para ser fluente. Até a sua natureza é composta de pedras e feixes de tamanhos variados, meandros e curvas, olho d’água, folhas secas e outras estruturas. Se imaginarmos a água que flui, não conseguiremos pensar em água que queda, mas assistiremos a uma ação intercorrente, que varia conforme os organismos que o corpo/água se depara.

O rio, em constante transformação, corre em estado fluido, distorcendo a transparência da água, em sua trajetória. Assim, também é a fala e seus sistemas de emissão, ressonância e articulação, seus estados subjetivos, o ambiente, a natureza. A fluência, segundo Aurélio B. de Holanda é a deformação lenta de um corpo submetido a uma tensão constante. Deduz-se então, que, mesmo a água do riacho deforma-se para fluir. Na gagueira hesita-se, vacila-se.

A respiração e o relaxamento são objetivos imprescindíveis a esta imagem. O falante necessita de amplitude e harmonia respiratória para falar bem. A emoção e os sentimentos alteram a respiração. Respirar é ritmo, pulsar, vitalizar, enquanto relaxar é tônus, alerta, não contração, equilibração muscular. Estar relaxado é condição necessária para o bem dizer. Movimentos tensos e acelerados dificultam o sentir, o fluir. Este é o caminho para o domínio da fala e outro desafio do trabalho com a gagueira e o sujeito gago: desacelerar, equilibrar, facilitar. A economia do movimento através do ritmo, evita o desgaste e o desconforto.

O ser vital está atento, tem o tom de voz colorido e presente, demonstra melodia, cadência e clareza na articulação. Elementos da arte de dizer, princípios prosódicos que necessitam ser revisitados. Pois, como o futuro do rio é o de desaguar no mar, também a fala chega ao seu destinatário, o outro, aquele que nos olha e é o espelho que reflete a nós mesmos.

Gente é muito bom
Gente deve ser o bom
Tem de se cuidar
De se respeitar o bom
Está certo dizer que estrelas estão no olhar
...
Gente quer ser feliz
Gente quer respirar ar pelo nariz
...Gente quer prosseguir
Quer durar quer crescer gente quer luzir
...
Gente é prá brilhar não prá morrer de fome
...
Gente espelho de estrelas reflexo do esplendor
...
Gente espelho da vida doce mistério.

Caetano VELOSO
Gente

A PRÁTICA, A GAGUEIRA NÃO VIRÓTICA.

A visão desta prática com gagueira emerge da necessidade de olhar e valorizar o indivíduo no lugar da patologia, de minimizar e rever antigas (re)ações diante do auto-conhecimento, do reforço da auto-estima e da expressão livre do pensamento, sem que o exercício constante de formular e selecionar o que se deseja dizer por medo de gaguejar, (antes mesmo de acontecer), dificulte o processo lingüístico.

Através da vontade de mudança do ser, da transformação de papéis que determinam e, que o próprio sujeito entende com sua compreensão, do reconhecimento e reforço do que lhe é saudável, do olho que passa a olhar para o momento do não gaguejar, do sucesso e bem estar que são promovidos por sua fluência, da harmonia entre os aspectos afetivo e lingüístico, do domínio da articulação não só verbal, mas de sua própria vida cinestésica (tendo como força geratriz o auto-conhecimento e a auto-estima), atingiremos, assim, o expoente máximo do ser, que tem na linguagem falada o instrumento para sua livre expressão, a qual somente aperfeiçoa-se e coexiste através da realimentação.

A proposta deste trabalho não baseia-se nos sintomas, mas sim na crença de que cada indivíduo é uno, indivisível, potencialmente retratador diante de sua expressão na vida. Somente a partir de si, da manifestação e da constatação de suas potencialidades poderá, este ser, reconhecer adiante esta divindade; para relacionar-se, entender-se e transformar(-se) com o outro.

Para que a criança diferencie o eu não-eu, o dentro-fora, o continente-conteúdo, o interno-externo, tem que se produzir uma transformação através da qual o sujeito irá assumir uma imagem como sua. Esta transformação é a identificação especular. Lacan especifica: A identificação é a transformação que se produz no sujeito quando assume uma imagem.

(LEVIN,1995,p.55)


O trabalho em gagueira, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro tem a opção de ocorrer individualmente ou em grupo. O grupo terapêutico facilita a progressão da consciência, imprime o ritmo e ativa o auto-conhecimento, através da possibilidade do diálogo tônico. Esta progressão deve existir desde a fala cadenciada, precisa, expressiva e suave do terapeuta; perpassando pelo movimento significativo , desacelerado e vital do sujeito gago.

Os limites e expansões correspondentes do corpo, podem ser facilitadas pelo toque. Movimentos tensos e acelerados dificultam o sentir, por isso a importância da vivência psicomotora: corpo vivido, discriminado e representado, que alicerça este trabalho. A base do desenvolvimento humano é o movimento. Não há uma possibilidade existencial que o movimento não participe, não esteja presente.

A música pode ser utilizada como um dos elementos terapêuticos e coexistente à prática vivencial. É captada por todo o corpo. O ritmo tem efeito principal nos jogos com a música. Os demais fatores (ressonância, memória afetiva, combinação de sons) reforçam esta ordem principal. Música e movimento. Compassos regulares, inicialmente. Som x silêncio. Vibração x descanso.

A música tem o poder de nos levar ao reencontro com a fonte motora (poder do ritmo), afetiva (melodia) e mental (organização temporal). A música é linguagem universal e não dispersa, como acreditam algumas filosofias terapêuticas. A música ativa os sistemas Simpático e Parassimpático. Ultrapassa barreiras.

Deve haver uma conexão entre as atividades corticais associadas às figurações e o sistema vegetativo, que tem seus centros mais importantes na substância cinzenta que envolve o terceiro e quarto ventrículos (cavidades internas do cérebro). Ficam aí os centros de todas as inervações vasovegetativas , e dos centros simpáticos e parassimpáticos.

(SCHILDER,1994,p.154)


A seleção musical deve ser estudada sob os aspectos: significado e significante, com o máximo de atenção e conhecimento, cognitiva e perceptivamente, jamais aleatoriamente; obedecendo, em seu registro, tanto poético (ao nível da letra) quanto rítmico (música propriamente dita), a métrica para cada proposta vivencial. Por exemplo: sons e vozes agudas conotam em nossos sentidos a noção de ar, do alto, de flutuar, do contato suave, de bolas de gás, de cabelos ao vento. Já os sons e vozes graves, assim como os contrastantes instrumentos de sopro e percussão, nos remetem à noção de terra, de baixo, de pés no chão, de força. As letras devem estar em harmonia com a realidade da vivência; o conteúdo, na medida; a poesia da letra, à poesia existencial. É necessário que o terapeuta ouça, sinta, cheire, veja e toque todas as palavras, todas as notas e acordes das músicas selecionadas. É fundamental um estudo apurado de semântica musical.

Os hindus concebem o mundo como uma iluminação sonora. Os gregos, olhando o firmamento, ouviam a harmonia das esferas. A música é a sonorização da alma. Até os animais carecem de música. Há quem diga que as pedra cantam. As plantas, silenciosamente, crescem melhor com Mozart. A natureza é música mineral, vegetal e orgânica. Ouçamos a música dos rios, das florestas e montanhas. O mundo é melodia visível. E os mais atentos ouvem o Absoluto.

Affonso Romano de SANT’ANNA


Esta prática propõe que as sensações básicas sejam consideradas, o estímulo das percepções, a ativação da auto-regulação, sem restringir-se a apenas um aspecto, seja articulatório, lingüístico ou emocional.

A psicomotricidade previne, amplia, perpassa. A criança e a família. O adulto e seus espelhos. Eu e o outro. Os estados subjetivos existentes no sujeito. O mundo. O meio. Somente quando me relaciono com o outro sou capaz de olhar e me ver, mesmo que através do reflexo dos olhos do outro. Quando resgato a espontaneidade e facilito a qualidade de ser feliz.

Fluir em grupo é compor música animada (que tem alma), melodia eternamente inacabada, expressa pela emoção que se oxigena, e conduzida pelo maestro maior que é a integração e respeito às diferenças existentes em cada um de nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. BERTHERAT, T. & BERNSTEIN, C. - O Correio do Corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
  2. CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. Apud Adauto Novaes. In O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
  3. FONSECA, V.D. - Psicomotricidade. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
  4. ___________ & MENDES, N.- Escola, escola quem és tu? Perspectivas Psicomotoras do Desenvolvimento Humano. Lisboa: Editorial Notícias.
  5. LE BOULCH, J.- O Desenvolvimento Psicomotor do nascimento aos 6 anos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
  6. LEVIN, E. A clínica psicomotora. O corpo na linguagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
  7. SCHILDER, P. A imagem do corpo. As energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
   
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